domingo, 29 de agosto de 2010





O Jarro de Sévres

Ele falou
___“ Vai sacudir as entranhas!”
E se afastou rindo, andando desajeitado, enquanto olhava para trás.
Ele era um chato, mas era o único colega da fábrica que caminhava ao meu lado todo fim de tarde, rumo a estação.Entrei no ônibus apinhado, encontrei um lugar de pé e me espichei para segurar na barra de ferro que serve de apoio as mãos, perto do teto .
Sorri assim meio de canto, e pensei, ele é um chato, mas até que tem razão, vou “sacudir as entranhas”bairro por bairro,até que o poente se transforme numa noite fria, úmida e fedorenta,como a de qualquer bairro operário.
Chego, subo as escadas de meu prédio e a cada degrau o meu corpo se adensa. Começo leve, e no quinto patamar peso uma tonelada,uma tonelada de 52 anos, prestes a se aposentar.

Abro a porta de meu apartamento de solteiro, o único que não cheira a comida; barulhos sobem de todos os andares e se desfazem no meu. São ecos de mães, pais, crianças, latidos de cachorros, gritos de papagaios, que me remetem a minha infância.
___”Jantar está na mesa, veja se o pai....”
Alguém grita num dos apartamentos e, esse fragmento de frase, me traz a memória minha mãe. Sinto o suave perfume francês, vejo-a no seu robe de seda esvoaçante, percorrendo os corredores do enorme apartamento burguês, finamente decorado.
___”Jantar está na mesa, veja se seu pai está na biblioteca e diga para vir,antes que a sopa esfrie”
Quantos anos eu tinha? Não me lembro.Não me lembro de quase nada.Minha memória fecha quadros, como as pedrinhas de um caleidoscópio,conforme giro outra forma surge e não consigo mais voltar a anterior. Minha mãe se desfaz,vaporosa,leve,flutua como uma nuvem.Eu a perco.
Uma briga começa no segundo andar,um homem grita, a mulher grita, as crianças choram,algo quebra se estilhaça, e me lembro do que não queria.Os alemães entram no apartamento, o Sévres mais querido de minha mãe,cai de uma colunata e se espatifa no chão,quebrado em mil pedaços, a respiração da família fica suspensa no ar.O resto não me lembro.
Nunca quis casar, tinha medo.Uma vez amei,quando era muito jovem e havia recém emigrado par aos USA, ela se parecia com o que eu me lembrava de minha mãe, parecia com o rosto que eu via a frente do meu cadeirão, enormes olhos castanhos escuros com cílios muito longos e uma boca rosada que estava sempre rindo.Ela queria ter filhos, eu nunca quis,nos separamos.Não amei mais mulher alguma.Com o passar dos anos os amigos foram se casando,tendo seus filhos, se mudando,se afastando, rareando.As horas trabalhadas aumentaram, os salários diminuíram, os empregos pioraram.Os invernos começaram a ficar longos, os verões curtos e sufocantes.
No dia que o jarro de Sévres de minha mãe quebrou,minha vida mudou drasticamente.
Fui vivendo como dava para se viver. O campo de concentração não foi o pior pedaço,como a maioria das pessoas podem pensar, o pior pedaço foi a vida inteira.
Foi eu ter sido apartado de mim, foi viver diariamente com a sensação de vida provisória,a sensação de estar vivendo uma vida que não era minha,de perder todos as minhas referêrncias de infância, de ter como amigo, um americano gordo e abobalhado,que todo fim de tarde sorria para mim e dizia

____” Vai sacudir as entranhas”

e que, por pior que fosse , aquele sorriso me fazia falta




Timbres de Sévres de 1751 à 1824

para meu filho Jean , Agosto de 2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário